Opinião

O Globo diz que “independência da justiça e democracia” são inegociáveis

Deu em O Globo

Há mistura de chantagem, ofensa, desleixo, ignorância, mentira e até ridículo na carta em que Donald Trump anuncia tarifas de 50% sobre importações do Brasil caso não seja suspenso o processo judicial contra o ex-presidente Jair Bolsonaro.

Trump costuma se gabar de seus dotes como negociador, mas simplesmente não há o que negociar diante de exigência tão estapafúrdia. Por um motivo singelo: tanto a independência da Justiça brasileira quanto a democracia brasileira são inegociáveis — e é ofensivo imaginar o contrário.

“O Brasil é um país soberano com instituições independentes que não aceitará ser tutelado por ninguém”, respondeu em tom preciso e sereno o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

CARTA ESTRANHA – Das dezenas de cartas que Trump enviou a diversos países anunciando aumento de tarifas, a brasileira é a única que mistura a política comercial dos Estados Unidos às preferências políticas de seu presidente. Tal confusão entre interesse público e afetos privados é sinal eloquente da visão autocrática que move seu governo.

Do ponto de vista econômico, as tarifas carecem de sentido. Os Estados Unidos compram 11% das exportações brasileiras e, ao contrário do que Trump afirma na carta, a balança tem sido amplamente favorável aos americanos, com US$ 410 bilhões de superávit nos últimos 15 anos em comércio e serviços.

“Trump nem finge haver justificativa econômica. Trata-se apenas de punir o Brasil por julgar Bolsonaro”, escreveu o Nobel de economia Paul Krugman. “Será que ele acredita mesmo que pode usar tarifas para forçar uma nação enorme, que nem é tão dependente do mercado americano, a abandonar a democracia?”

COMO REAGIR? –  Trata-se, naturalmente, de questão retórica. Dado que nada mudará nos processos contra Bolsonaro nem nas decisões da Justiça brasileira relativas a conteúdos em redes sociais — a segunda exigência feita por Trump —, o governo Lula se vê diante de um problema prático: como reagir?

As primeiras manifestações foram corretas. Trump deve receber o tratamento que se dispensa a provocadores: firmeza e serenidade na exposição de seus motivos e fraquezas. Ao mesmo tempo, o governo brasileiro faria bem em tentar retomar negociações comerciais se houver abertura. Países como Reino Unido, México, Vietnã e a própria China já obtiveram sucesso com diálogo.

Há, é verdade, dificuldades. No campo externo, era previsível alguma reação americana às iniciativas diplomáticas de Lula, sobretudo à tentativa de buscar alternativas ao dólar e à retórica que alinha o Brasil a países no polo oposto dos valores ocidentais, como Irã e Rússia.

RETALIAÇÃO – Escalar a disputa por motivação política só prejudicará ainda mais o Brasil, portanto o próprio governo. Se necessária, qualquer retaliação precisa dar ênfase a medidas que se façam sentir para as empresas americanas, como quebra de patentes ou taxação de serviços digitais.

No campo interno, continuará a pressão de Bolsonaro. Mas a carta de Trump faz mal também à oposição, pois traz danos a setores com ela identificados, como indústria ou agronegócio. E, fundamentalmente, ao Brasil, empresários e trabalhadores.

Não tardará a que o país entenda as consequências das tarifas e ponha a culpa em quem as celebrou. No passado, Trump já abandonou aliados e recuou de medidas estapafúrdias quando a realidade se fez valer. É incerto até que ponto irá seu apego a Bolsonaro.