Opinião

Jornalista mostra a estreita relação do sistema GLOBO com a ditadura militar

Na véspera do AI-5, Roberto Marinho tentou humilhar o diretor de O Globo

Carlos Newton

Muito interessante a comemoração dos 100 anos de O Globo, que serviu de base à formação de uma das maiores redes de comunicação social do mundo, que jamais poderia se formar em países verdadeiramente democráticos, porque neles a legislação não aceita que nenhum empresário possa deter tantas fatias de poder pessoalmente ou em sua relação com as autoridades dos três poderes.

Na festa dos 100 anos, é pena que os filhos não tenham a grandeza de traçar uma visão realista da organização e de seus criadores, preferindo exagerar na louvação a Roberto Marinho, cujos defeitos ultrapassavam em muito as possíveis qualidades.

AUTORITARISMO – Aliás, perscrutando em profundidade sua trajetória, a única qualidade que hoje consigo identificar em Marinho era a incontestável autoridade que exercia nas empresas e na vida pessoal.

Em sentido amplo, porém, essa qualidade pode ser também negativa, pois se transforma em autoritarismo, e realmente jamais conheci ninguém mais autoritário do que ele, pois os próprios filhos o chamavam de “Doutor Roberto”, embora não tivesse formação acadêmica.

Seu gabinete era colado na redação e havia uma porta, que ele raríssimamente usava. Em salas menores ficavam o diretor de redação e o editorialista, que eram os únicos que falavam diretamente com Marinho no dia-a-dia da Redação, além de Carlos Chagas, que escrevia a coluna de Política.

VÉSPERA DO AI-5 – Em 12 dezembro de 1968, uma quinta-feira de muito calor, o país estava fervendo com a tentativa de cassação do deputado Márcio Moreira Alves, devido a um pequeno discurso que pronunciara na Câmara, criticando o governo ditatorial e pedindo que as jovens não dançassem com os cadetes nos bailes de formatura das academias militares.

Era uma situação que começara ridícula e se tornava cada vez mais patética e perigosa. No início da noite, os editores se reuniam numa grande mesa, lá no final da Redação, para apresentar ao diretor Moacyr Padilha as matérias que mereciam sair na primeira página.

Abre-se a porta e Roberto Marinho entra na Redação. Faz-se um impressionante silêncio e só se ouvem os passos dele, que caminhava batendo os calcanhares no assoalho de madeira, e trazendo na mão um exemplar do jornal.

AUTORITARiSMO – Foi uma situação sinistra, a demonstrar o autoritarismo do dono de O Globo, que ostentava o título de diretor-redator-chefe, função que nunca exerceu. Ele não precisava fazer cena, bastava chamar a seu gabinete o diretor Padilha, um jornalista de vastíssima cultura e pessoa de finíssimo trato, filho do governador fluminense Raimundo Padilha. Mas o descontrolado Roberto Marinho queria humilhá-lo em plena Redação.

– Como é que vocês publicam essa entrevista do Djalma Marinho? – indagou bem alto, com aquela voz roufenha que o caracterizava.

Padilha, um homem muito educado, ficou lívido. Por acaso,  Roberto Marinho parara a meu lado, e vi que ele estava tão furioso que espumava pela boca, em meio ao silêncio constrangedor.

O QUE ESTÁ HAVENDO? – O editor de Política era o lendário Antonio Vianna, que tinha entrevistado o deputado Djalma Marinho, presidente da Comissão de Justiça, um jurista muito respeitado e que se manifestara contra a cassação de Moreira Alves.

– O que está havendo, Roberto? Nunca vi você assim. O assunto do momento é o caso Moreira Alves, e Djalma Marinho preside a Comissão que vai julgá-lo. Tínhamos de ouvi-lo.

Roberto Marinho caiu em si. Viu a bobagem que fizera ao humilhar Moacyr Padilha e não disse nada. Simplesmente virou as costas e voltou a seu gabinete, naquele caminhar de passos marcados, em meio ao silêncio dos jornalistas.

CORAGEM E MODÉSTIA – Quando a porta se fechou, todos os editores se levantaram das cadeiras e cercaram Vianna. O diretor Padilha estava impressionado e agradeceu. “Nunca vi ninguém tão corajoso quanto você. E ainda o chamou de Roberto!!!”

Modesto, Vianna tentou sair pela tangente: “Não tenho coragem, o que tenho é um cartório, que me dá uma situação financeira equilibrada. Assim, posso contestar nosso chefe e chamá-lo de Roberto, porque o conheço há 20 anos e somos amigos”.

Não era verdade. Vianna era tabelião do cartório mais furreca da cidade. O faturamento era tão pequeno que sua mulher e um de seus filhos tinham de trabalhar lá, para completar o orçamento familiar.

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P.S. 1
 – E assim o AI-5 foi baixado no dia seguinte, uma sexta-feira, 13. Em tradução simultânea, Roberto Marinho sabia que o AI-5 seria assinado. Se fosse mais jornalista do que empresário, teria dado a notícia como manchete do Globo, mas não teve coragem para tanto.

P.S. 2 – Quanto a Antonio Vianna de Lima, sua coragem era conhecida. Foi ele quem salvou a vida de Carlos Lacerda, quando um deputado do PSD tentou matar o líder da UDN, no plenário da Câmara, que ainda funcionava no Rio de Janeiro. Se amanhã eu estiver melhor da gripe, vou tentar contar essa história, que raríssimas pessoas conhecem. (C.N.)