Deu no Correio Braziliense
No próximo 15 de Novembro, completam-se 30 anos da primeira eleição direta pós-ditadura de 1964. O país afundado numa crise econômica, o presidente José Sarney desgastado. Depois de uma longa campanha, com 22 candidatos, e no mano-mano com Lula, Fernando Collor de Mello torna-se o mais jovem brasileiro a tomar assento no terceiro andar do Planalto.
“É claro que, quando me elegi, eu disse: ‘Bom, sou um um super-homem ( …) Essa questão da eleição em que se ganha com uma disputa muito acirrada, e essa coisa toda, faz do vitorioso a primeira sensação de que: ‘não, eu posso tudo. Agora, eu sou o maioral e, agora, todos os outros têm que se submeter à minha vontade, ao meu desejo’. Isso é um erro, e está acontecendo agora”, avalia o senador Fernando Collor, 70 anos, nesta entrevista exclusiva ao Correio, cujo resumo segue abaixo.
O senhor foi eleito para a Presidência da República em um período de muita polarização, como vê o cenário atual?
É um filme que eu já vi. Certos episódios e eventos me deixam muito preocupado, talvez não cheguemos a um bom termo sobre o mandato mal exercido pelo presidente da República — a começar por essa falta de interesse em construir uma base sólida de sustentação no Parlamento. Partindo-se do princípio de que, sem maioria no Congresso, não se governa — isso é uma condição sine qua non em um regime presidencialista, mas também no parlamentarista. O desinteresse em construir essa maioria nos leva a temer um desenlace diferente do que gostaríamos. E, num clima de ingovernabilidade, tudo pode acontecer. Foi um descuido de minha parte, nesse ponto, eu vejo a semelhança de não ter me preocupado, não ter dedicado a atenção devida desde o início do meu governo a um melhor relacionamento com a classe política. O presidente da República precisa entender que ele é o líder político da nação. Como líder político da nação, ele tem por dever fazer política, e fazer política pelos caminhos institucionais, com os partidos políticos e com os políticos. Querer quebrar uma regra de ouro de um processo democrático, é um nonsense.
O senhor considera que o presidente não tem um interesse nessa aproximação com o Congresso? Ele não entende essa necessidade?
Não vejo por parte do presidente interesse em uma maior aproximação com o Congresso Nacional, apesar de ele ter no seu currículo 28 anos de experiência na Câmara dos Deputados. Mas me parece que ele não tirou nenhuma lição até agora, iludido, que se encontra num momento em que reformas patrocinadas pelo Executivo tiveram apoio na Câmara e, depois, no Senado Federal. É uma falsa dedução de que esse apoio dos deputados e dos senadores, especificamente falando da reforma da Previdência, representa o apoio que ele detém no Congresso Nacional. Isso não é verdadeiro, porque nós sabemos que as reformas caminharam até agora graças ao esforço inaudito do presidente (da Câmara dos Deputados) Rodrigo Maia (DEM-RJ) e também do Davi Alcolumbre (DEM-AP) — presidente do Senado. Ou seja, são propostas de reforma que o Congresso Nacional chamou para si e tocou como suas.
Isso está separado? Uma coisa são as reformas econômicas de que o país precisa, outra, é o apoio ao governo. São estações estanques?
É completamente diferente. O apoio do Congresso ao governo não se mede por um evento como esse, da aprovação das reformas e do número elevado de participantes pró-reformas. O apoio ao governo, nós verificamos pela solidariedade dos parlamentares ao presidente da República, e não me parece que exista essa solidariedade ao presidente da República. No momento em que ele precisar dessa solidariedade do Congresso, ela vai lhe faltar, e isso cria um certo problema institucional para o país.
O senhor é senador desde 2007. Viu os ex-presidentes Lula, Dilma, Temer e, agora, Bolsonaro ocuparem a presidência. Como avalia cada um deles? Como Bolsonaro está se portando em comparação aos que já passaram?
É um governo completamente diferente dos outros. Primordialmente, é um governo que se nega a entender os partidos políticos como os canais institucionalmente válidos para a interlocução entre os interesses da população e não usa a capacidade do Executivo para atendê-las. Faltando essa compreensão, falta um instrumento essencial para o exercício da democracia.
A caminhar neste ritmo, o fim do filme pode ser o mesmo do seu governo e da presidente Dilma (o impeachment)?
Olhe, continuando assim, eu não vejo a menor possibilidade de este governo dar certo. O que acontecerá, eu não saberia dizer. Mas, se continuar do jeito que está, o governo não tem como levar adiante o período governamental.
Mesmo com a economia entrando nos eixos? Porque a gente percebe sinais de recuperação econômica.
A dificuldade é coordenar esse discurso otimista. É muito difícil que nós, com esse discurso, convençamos a população de que as coisas estão melhorando. Falar para a população: “Olha, pessoal, tenham calma. Vocês estão vendo a Bolsa de Valores batendo recorde de pontos, o dólar baixando, temos 12,5 milhões de desempregados, mas temos 140 mil trabalhadores com carteira assinada, os juros atingiram o percentual mais baixo da história”. A classe média, que tem o seu cartão de crédito e o seu cheque especial, não vê isso refletido no dia a dia. Quando parcela a conta do cartão, vê que os juros batem 300%. No cheque especial, são 280%. Aí, a resposta é: “Bom, mas como é que nós temos hoje os juros ditos aí, que são os mais baixos da história do país, se eu estou pagando 300% ao ano no parcelamento do meu cartão de crédito ou no meu limite de cheque especial?”. O último exemplo disso foi o que aconteceu no Chile, que, ao longo dos últimos anos, era tido como o país de maior equilíbrio e maior estabilidade econômica na América Latina, onde as reformas foram feitas, segundo propagado, com muito sucesso e muito êxito. Parecia um paraíso aqui no nosso continente. E, de repente, essa ebulição.
O presidente tem uma base muito forte na internet, nas redes sociais. Não falta um pouco de diálogo, também, com a sociedade como um todo?
Isso é um perigo. O presidente incorre num erro grande, na minha avaliação, quando ele delimita a sua interlocução a um nicho de 15%, 20% da população, que são aqueles considerados bolsonaristas puros de origem. Eles não representam a nação brasileira. O que representa a nação brasileira é o conjunto da sociedade na sua diversidade. O presidente precisa entender que os votos que ele obteve na eleição não representam o apoio a ele enquanto candidato. Uma grande parcela foi dada a ele em função daqueles que não queriam a volta do PT ao governo — o chamado antipetismo.
Bolsonaro não entendeu isso ainda?
Não, não entendeu. E também não entendeu uma coisa ainda mais importante, que é a questão da construção de uma unidade nacional em torno de um projeto de país. O país saiu muito dividido dessa eleição. As divisões foram aprofundadas e, naturalmente, quando o presidente é eleito, elas seguem existindo. É necessário ter um projeto que aglutine a população, que una o país. E esse projeto não existe.
Mas a população gostou quando o presidente escolheu o governo e os ministros sem ouvir os partidos…
É, porque o que foi vendido foi o seguinte: não vamos ter “toma lá dá cá”. Então, vou escolher os que achar conveniente. Isso, a população gosta, acredita e diz: “Poxa vida, esse camarada é um super-homem. Vai conseguir governar sem ouvir partido político, sem oferecer nada para que eles possam se sentir representados no governo”. Ele deixa de ser um super-homem quando chega ao final e a população verifica que tudo aquilo que foi dito era uma antessala para realizar uma grande administração que não deu em nada. O que a população deseja é ver um governo que funcione e dê respostas positivas às expectativas. É fácil de dizer que não quer conversa com classe política, mas não dá resultado nenhum. Então, é uma questão absolutamente clara, nítida, cristalina: governo que não compõe, que não constrói a sua maioria, não governa, não dura.
O presidente, nos momentos mais críticos, coloca em xeque a questão da democracia, de valores constitucionais importantes. Acha que a democracia do Brasil corre risco?
Eu vejo com uma apreensão certas manifestações que são claramente dadas pelos filhos. Eventualmente, pelo próprio presidente da República, em menor intensidade, sobre esse questionamento do regime democrático, de que não funciona se não for uma ditadura, se não for um regime forte.
Fala-se até no AI-5 (um dos piores períodos da ditadura militar) com uma tranquilidade enorme…
Falado dessa forma, isso nos coloca com uma pulga atrás da orelha. Porque não é qualquer pessoa que está falando. É alguém como um de seus filhos. Um deles tem a senha do seu Twitter, portanto, uma pessoa da mais estrita confiança, que, além dos laços familiares, compartilha a mais absoluta confiança sobre o pensamento político dele. Então, num momento assim, vale dizer, que é o próprio presidente da República tuitando. Esse tipo de ameaça, afirmação ou divagação tem que acabar de uma vez por todas. Estamos vivendo num regime democrático, uma democracia com sobressaltos, mas uma democracia moderna. Declarações desse tipo, ameaças desse tipo, elucubrações desse tipo, não cabem realmente no momento atual em que vivemos, nem em momento nenhum.