Para o ministro Gilmar Mendes, a democracia brasileira vive um experimentalismo. Ele acredita que os embates e as crises decorrentes do governo Bolsonaro representam as dores do processo democrático e resultam do natural confronto de divergências em busca das melhores soluções para o país.
O Brasil, segundo Gilmar Mendes, passa por um momento de aprendizado, no qual testam-se os limites das instituições. Não significa, contudo, que o magistrado do Supremo de 64 anos tolere arroubos autoritários tampouco a nostalgia ao regime militar que impôs graves danos às garantias individuais. “Não há saída fora da democracia”, decreta o ministro, que repudia o ambiente beligerante que se instalou nas redes sociais e por vezes é alimentado por integrantes da República.
Conhecido por ter um estilo contundente no Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes adota, nesta entrevista ao Correio, um tom moderado, pacificador. Acredita que o Brasil precisa concentrar energia em debates substanciais de forma a atender aos interesses do país e evitar discussões como abertura de processo contra o presidente Jair Bolsonaro. “O impeachment é uma bomba atômica em termos institucionais”, devendo ser usado somente em situações extremas.
Sobre as especulações em torno de um possível ministro “terrivelmente evangélico”, Gilmar prefere que o novo integrante da Corte seja “terrível constitutionalista”. Torcedor do Santos e fã de Pelé, o ministro coleciona em seu gabinete fotos, charges e recortes de jornais do time da Vila Belmiro. Nas peladas de Diamantino, cidade de Mato Grosso onde nasceu em 1955, Gilmar foi um modesto jogador. Na política e nos tribunais, sempre atuou no ataque. Mas está em uma fase conciliadora.
Como o senhor vê essa abertura do ano pós-carnaval, com tensão entre os Poderes ?S Como sair disso e colocar o país num clima mais ameno para tirá-lo da crise econômica e social?
O ano passado teve uma série de tumultos e desinteligências, mas optou-se pelo substancial, aquilo que, de fato, era importante. Houve uma consciência de todos os atores de que era importante o país voltar a crescer e a fazer ajustes. A reforma da Previdência, que era algo muito difícil, é difícil em todo o lugar. Tinha sido difícil mesmo no governo Temer e isso serviu de um pouco de catarse, o debate que lá houve. Mas surpreendentemente caminhou relativamente fácil, considerando as dificuldades e até uma certa ausência do próprio governo como protagonista. Câmara e Senado trabalharam de maneira bastante autônoma e responsável. E, vamos dizer a verdade, as próprias corporações, que são muito fortes e representativas, entenderam que era preciso, por exemplo, estabelecer um limite de idade. Houve um consenso nesse sentido e o mercado avaliou bem, tanto é que a bolsa explodiu com os bons resultados. E outras reformas importantes também começaram a andar, já se havia feito a reforma trabalhista, que é extremamente relevante e votações importantes ocorreram no plano institucional, a lei de abuso de autoridade, o próprio juiz de garantia.
As desinteligências não atrapalham?
Então, acho que muitas coisas ocorreram apesar dessas desinteligências e desses tumultos políticos. Espero que este ano ocorra da mesma forma. Que, a despeito dos entendimentos e das eventuais turbulências, que podem até ser agravadas tendo em vista o contexto eleitoral, ainda que seja eleição municipal. Espero que esse juízo substancialista sobreponha-se a uma visão mais perfunctória, adjetiva, viabilize-se o interesse do país. Já estamos há alguns anos sem crescimento e, isso para nós, significa muito. Significa uma população jovem sem emprego, aqueles que, na linguagem técnica de alguns setores, são os nem nem, nem estudam, nem trabalham.
Há uma manifestação prevista para o dia 15, na qual alguns vídeos falam em um movimento contra o Congresso e contra o STF. Como o senhor avalia?
A gente deve gastar energia com questões, de fato, substanciais. Se houvesse um projeto de reforma e, de fato, o Congresso não estivesse votando, então, vamos fazer uma manifestação para que haja uma deliberação mais célere. Mas não faz sentido isto. O Congresso está deliberando de uma maneira madura, como há muito não se via. O Congresso brasileiro é um Parlamento extremamente forte. E, ao longo dos anos, isso tem mudança de tempos em tempos, ele dependia muito da ação do Poder Executivo. Normalmente, eram as lideranças que conduziam a pauta. Aqui, acolá surgia uma pauta autônoma, mas em geral, seu protagonismo dependia da coordenação do Executivo.
O Congresso não é mais coadjuvante?
Estamos vendo, nos últimos tempos, e já se via um ensaio disso no governo Temer, a ideia de uma certa parceria, tanto é que o presidente Temer chegou a falar que estava inaugurando um certo semipresidencialismo. Já havia esse ensaio de corresponsabilidade política. Pelo menos, no ano que passou, Câmara e Senado tiveram um papel importante reconhecido por todos nós, pelos resultados. Vimos a fala do ministro Paulo Guedes em Davos, em que ele apresentou todas as reformas que foram votadas. Aquilo foi avaliado positivamente. E, se a gente olhar, aquilo é mérito do Congresso. Evidentemente, está numa pauta também da economia, mas se vê que o Congresso foi parceiro institucional daquilo que foi bem avaliado em termos internacionais.
Pelo que o senhoe diz, o Congresso está cumprindo o papel dele. Pode-se dizer o mesmo do Executivo?
Tenho a impressão de que há aqui um aprendizado que todos os governos têm que exercitar e desenvolver, talvez um modelo. Qual será esse modelo? Uma Casa Civil mais forte? Uma Casa Civil que divide poderes com outras coordenações? Estaria o presidente muito sobrecarregado? Em suma, como se dividem as tarefas administrativas e as tarefas de coordenação política. Tudo isso precisa ser devidamente definido. E temos visto que, nessa seara, tem havido mudanças constantes, explícitas e outras internas. Então, ainda há um modelo institucional in fieri rae, em formação. É natural. O presidente veio de um movimento novo, de um partido novo e fez um outro tipo de coligação para governar, ou seja, dispensou a ideia do presidencialismo de coalizão e buscou apoio nas bancadas temáticas. Então, me parece que esse é um aprendizado.
A lua de mel dura quanto tempo?
Um ano é o período que o governo tem de lua de mel com o Congresso. Depois, isso pode se tornar mais tenso. O próprio presidente fez um redimensionamento, reestruturou a Casa Civil, então, tem que se esperar o resultado disso. É curioso, se a gente olhar a Constituição de 88, a prática política começa logo em 89, ela tem testado um amplo espectro de forças políticas. Se começarmos pelo presidente Collor, depois veio Itamar, Fernando Henrique, Lula, Dilma. Sua excelência, o eleitor, se permitiu várias experiências. E agora temos uma que não estava cogitada naquele momento eleitoral inicial. Por isso, também, é natural que haja incompreensões, testes, recuos diálogos que ficam interrompidos. Mas eu tenho a impressão de que é preciso que esse grau de conflituosidade seja limitado. E até, se possivel, bastante reduzido.
senhor faz aí uma manifestação de conciliação dos Poderes, é o momento de paz para o Brasil, é isso?
O Brasil é fantástico, primeiro, porque tem uma energia muito grande. O Brasil cresce à noite, porque durante o dia a gente dilapida as coisas positivas. A gente, como dizia Roberto Campos, não perde a oportunidade de perder oportunidade. A gente não pode mais se dar ao luxo de fazer isso. Temos que investir energia em algo positivo. Também não podemos acender o isqueiro ou fósforo para saber se tem gasolina no tanque, porque a gente já sabe a resposta. Então, acho que, se alguém apostar em disrupção, ruptura, certamente haverá resistência das instituições. Obviamente, temos um compromisso com a democracia.
Isso vale também para pedidos de impeachment que possam surgir?
O impeachment, nós sabemos, é uma bomba atômica em termos institucionais. No presidencialismo, existe para não ser usado. No nosso caso, já usamos duas vezes. Mas, em geral, você tem uma conjugação de fatores. Tem, de fato, a prática de um crime e tem condições de desmantelo do sistema econômico-político. Nos dois casos que tivemos, isso ocorreu, tanto no governo Collor, quanto no governo Dilma. No fundo, a gente fez um tipo de parlamentarização do impeachment. Quer dizer, o presidente que perde apoio no Congresso e cria um quadro de não governabilidade passa a ser suscetível de impeachment. É o que tem ocorrido. Não basta só o argumento do crime político, é preciso que haja uma condição econômica e política.
E não estamos nesse cenário?
Não se tem esse cenário. Tenho impressão até de que há um certo cansaço em relação a isso. Tendo em vista o elemento traumático que compõe o impeachment inevitavelmente, a ruptura, o sentimento de vendita, que alimenta as forças políticas que são retiradas do poder. Tudo isso me parece que fez com que as forças políticas hoje tenham consciência de que não é o melhor caminho. E isso não deveria nunca ser nem pauta política, isso é uma medida in extremis que, no nosso caso, em 30 anos, usamos já duas vezes. Portanto, de exceção, tornou-se quase uma regra.
Isso não é perigoso porque, sempre que um presidente tiver minoria, pode sofrer um processo?
Sempre é. Ao mesmo tempo, também, numa situação de ingovernabilidade, há o risco de perda de comando, como a gente teve naquele quadro inicial-final (segundo ano do segundo mandato) do governo Dilma. No governo Temer, começamos a discutir e ele se animava a discutir a ideia do semipresidencialismo, o modelo português, onde se tem o presidente mas divide também o poder com o Congresso. Num futuro não muito distante, o Brasil vai acabar tendo que discutir essa questão e acho importante que isso seja, de fato, discutido. E é bom que seja discutido num ambiente de reformas em favor do Brasil, e não contra ninguém especificamente. Se tiver que votar uma emenda desse tipo, tem que ser votada para o futuro, para próximos mandatos. E, claro, isso pressupõe uma reorganização política, menos forças políticas no Congresso. Esse número imenso de partidos não permite fazer um contrato de coalizão claro. A nossa energia deve estar voltada para a construção, e não para destruição. Isso me parece o básico.
Correio Braziliense