Opinião

Jurista diz que prisão de “João de Deus”, na forma da lei, foi uma decisão totalmente absurda

Estupro, violação sexual mediante fraude, importunação sexual, assédio sexual, sedução, estupro de vulnerável e outros crimes contra a liberdade sexual, todos, para serem apurados e o infrator condenado, necessitavam, obrigatoriamente, da formalização de queixa (ou representação) do ofendido. Era a chamada ação penal condicionada, conforme estabeleceu o Código Penal de 1940. Dependia, portanto, da iniciativa da parte ofendida (ou de seu representante legal, se fosse vítima menor de idade) para apresentar queixa, sem a qual nenhuma investigação seria aberta para que o crime fosse apurado.

E havia prazo exíguo para que a parte ofendida se queixasse à autoridade: 6 meses, contados do dia em que o autor do crime foi identificado.

DECADÊNCIA – Se a queixa ou representação não fosse apresentada nos 6 meses, ocorria o fenômeno da decadência. Ou seja, a perda do direito de se queixar. E o crime desapareceria. Não poderia mais ser investigado.

O ofendido decai do direito de queixa ou representação se não o exercer dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que veio saber quem é o autor do crime...” (artigo 103 do Código Penal).

Até que foi editada a Lei nº 13.718, de 25.9.2018, e neste mesmo dia entrou em vigor. Há menos de três meses, portanto. Esta lei acabou com a ação penal privada para os crimes contra a liberdade sexual, contra menores e maiores de idade, e os tornou, todos, crimes de ação pública incondicionada. Portanto, desde 25 de Setembro deste ano de 2018, autoridade que tomar conhecimento da prática de crime contra a liberdade sexual e outros do mesmo gênero, a autoridade é obrigada a agir de ofício, como age no caso de homicídio, parra citar apenas um exemplo.

NÃO RETROAGE – A ação da autoridade não depende mais de queixa ou representação da parte ofendida. Mas que fique esclarecido que a lei só vale para os crimes contra a liberdade sexual cometidos a partir da vigência da lei, isto é, 25 de Setembro de 2018. Os que foram praticados antes e não foram objeto de queixa nos seis meses seguinte, todos estão cobertos pela decadência. A vítima não pode mais agir contra o ofensor. Decaiu do direito de queixa.

Não se tem notícia que dos relatos que as ditas 335 mulheres fizeram contra o médium João de Deus  (relatos até por telefone!, por e-mail! e alguns perante a policia e agentes do Ministério Público), algum ou alguns deles tenham ocorrido após 25 de Setembro de 2018, quando os apontados crimes se tornaram de ação pública incondicionada e deixaram de ser de ação privada, que exigia queixa no prazo de seis meses.

PASSADO DISTANTE – Há relatos de atos libidinosos e outros mais graves que João de Deus teria praticado há 10, 20, 30 anos!. Só agora é que as que se dizem vítimas (seriam 335 mulheres!) aparecem para acusar o médium.

Mesmo assim, cientes de que os relatos são desacompanhados de prova, feitos só recentemente e não estão amparados pela Lei 13.718 de 25.9.2018; cientes de que as mulheres (quiçá as 335!) decaíram do direito de queixa, em razão dos anos e anos decorridos e os eventuais crimes não podem ser mais investigados (salvo os cometidos após 25 de setembro de 2018) porque cobertos pela decadência do direito de queixa e cientes de que há penas prescritas (quiçá no tocante as 335 vítimas!), mesmo assim a Justiça decretou a prisão de João de Deus!.

SEM DEFESA – Prendeu-se para investigar depois. E sem que João de Deus fosse ouvido antes. Sem direito de defesa. Sem que seus advogados tivessem acesso aos relatos das ditas 335 mulheres!  Ora, ora, é investigação estéril, seca, árida, que não produzirá efeito ou fruto algum, por causa do tempo (anos e anos) decorrido. Ou será que a queixa de uma mulher que se disse violentada por João de Deus anos atrás vai ser investigada porque só agora, passados muitíssimo mais de seis meses do alegado crime, a mulher se queixou à polícia ou à promotoria pública?

É óbvio que tanto não poderá ocorrer, porque na época do alegado crime a investigação e instauração de processo contra João de Deus dependia de queixa da vítima. A ação penal era condicionada à queixa. E queixa no prazo de seis meses a contar do alegado ato criminoso. E tanto não aconteceu.

DECISÃO ILEGAL – A prisão de João  de Deus é uma das mais absurdas decisões que a Justiça deste país tomou em toda a sua história republicana e democrática. É ato de força. É ato de tirania. É ato de absoluta inconsistência legal e humanitária, visto que nenhum dos motivos ensejadores da prisão preventiva estavam – e nem continuam a estar – presentes e ocorrendo para a sua decretação.

Vá fundo, eminente colega doutor Alberto Toron, notável criminalista. Dê entrada imediatamente no Habeas-Corpus junto ao Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, e obtenha liminar para que João de Deus deixe a prisão.

Registra-se que a análise que se faz neste breve artigo é meramente técnica. Coloca-se o rumoroso caso sob a ótica da lei. Nada mais.

JOÃO DO CAPETA – De resto, a ser verdade mesmo o que as mulheres contam, e ainda que as penas estejam prescritas e as vítimas decaíram do direito de  queixa, este João não é de Deus, mas é do “capeta”. Um capeta que vai se beneficiar desta sutil questão entre ação penal de iniciativa privada e a novidade da ação penal pública para os crimes sexuais, mas que só vale, repita-se, para os crimes cometidos a contar de 25 de Setembro de 2018.

Os alegados crimes que o “capeta” teria cometido antes (e quanto mais antes, melhor para o “diabo”), aqueles estão mortos e sepultados no inferno. Não podem mais ser ressuscitados a fim de serem investigados e o agente ofensor processado e julgado.

Jorge Béja