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Saúde na UTI: o drama de 1,4 milhão de brasileiros na fila do INSS que ninguém vê

Três números não saem da cabeça da desempregada Josilene Batista. Os 30 dias que se passaram desde que ficou viúva, os R$ 400 que precisa para comprar remédio todo mês, e os mais de 100 dias de espera por uma decisão do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

A espera de Josilene pela resposta do governo já dura mais que o dobro dos 45 dias previstos em lei como o limite para o INSS dar uma resposta.

Esse prazo deveria ser contado desde a data de entrega dos documentos para pedir a aposentadoria ou outro benefício até o primeiro pagamento.

Quando avalia que alguém não cumpre os requisitos, o INSS, claro, pode recusar o pedido ao benefício. Mas hoje o problema tem começado antes mesmo de uma possível negativa.

As antigas filas quilométricas nas portas das agências se tornaram uma espécie de fila virtual de pessoas que simplesmente aguardam um “sim” ou um “não” do INSS.

É por isso que a demora que Josilene enfrenta não é uma exceção. O tempo médio de espera está hoje em 135 dias – o triplo do prazo estabelecido pela lei, segundo dados do próprio órgão.

Dos 2,2 milhões de pedidos em análise pelo INSS hoje, 1,4 milhão já estão atrasados. São casos que envolvem diversos benefícios, como aposentadoria por idade, por tempo de contribuição, auxílio-doença, aposentadoria rural, entre outros.

O pedido de Josilene, feito em janeiro, foi para receber o benefício assistencial pago a idosos ou pessoas com deficiência em condição de pobreza, o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Ele tem valor de um salário mínimo (R$ 998) e, diferente da aposentadoria, não dá direito a 13º e não deixa pensão para os dependentes.

Para ter direito a ele, é preciso provar que a renda familiar por pessoa é de até um quarto do salário mínimo (menos de R$ 250). Além disso, como ainda não chegou aos 65 anos para ser considerada idosa, Josilene tem que provar impedimentos (físicos, mentais, intelectuais ou sensoriais) para cumprir suas atividades.

Com 51 anos, diabetes, hipertensão e apenas 20% da visão no olho esquerdo, ela conta que tem tido dificuldade até para caminhar sozinha. A última vez que Josilene trabalhou foi em um frigorífico, até 2016.

“Ninguém quer uma pessoa assim para trabalhar. Eu não consigo emprego por causa dos problemas de saúde do momento. Eu realmente espero melhorar, e aí eu posso voltar a trabalhar”, diz.

Enquanto não consegue trabalhar, os R$ 89 do Bolsa Família são a única renda de Josilene, que mora na cidade de Caruaru, em Pernambuco.

O problema é que, só para comprar os remédios, ela precisa de R$ 400. São medicamentos para o “coração”, como ela explica, e a insulina, já que o tipo que ela usa não é oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

“A gente deixa de comprar alguma coisa de comida pra comprar a medicação”, diz ela, que tem precisado de ajuda financeira da filha.

A situação ficou mais difícil depois da morte do marido, Joseildo Barbosa, no começo deste ano, depois de ter tomado doses altas de remédios psiquiátricos. Eles ficaram juntos por 35 anos.

“Ele se desesperou, tomou grande quantidade de remédio e terminou falecendo por falta de socorro médico. Eu tenho todos os laudos dele, da esquizofrenia. Ele também tinha pedido benefício ao INSS, mas tinha tudo negado, mesmo tendo direito.”

Josilene se mudou para a casa do filho, Josino Batista, de 32 anos.

“Depois que meu marido faleceu, o único jeito de sobreviver foi vir morar com ele. É que R$ 89 não dá pra alugar nem um quarto, imagina uma casinha.”

Quando Josilene disse que pretendia voltar ao mercado de trabalho, a BBC News Brasil perguntou quais são os planos dela.

“Eu faço qualquer tipo de serviço, não dá pra escolher muito. Eu não tenho formação de computador, nada disso. Mas eu aprendo. Eu estou no mundo é pra aprender. Mas eu preciso de saúde.”

Como a fila presencial virou uma fila eletrônica

O presidente do INSS, Renato Vieira, disse, em entrevista à BBC News Brasil, que o órgão investiu muito, nos últimos anos, em melhorar o atendimento ao público. Isso, contudo, não veio acompanhado de investimento, na mesma medida, no processo de avaliar os pedidos de benefícios.

“Surtiu resultado e filas sumiram, mas passados dez anos esses avanços se perderam pelo aumento da demanda e perda de capacidade operacional. Esse represamento do atendimento voltou a acontecer, mas nas filas eletrônicas”, afirmou.

Por volta de 2005, para atacar a dificuldade de o público conseguir marcar atendimento no INSS, ele diz que foram tomadas medidas como a criação de uma diretoria de atendimento, a expansão do número de agências e melhorias no sistema de atendimento pelo telefone.

Hoje, segundo Vieira, uma pessoa espera, em média, 14 dias entre a data do agendamento e o atendimento em si.

“No passado, a porta de entrada era do tamanho da porta de saída. O ritmo era o mesmo. Com todas essas medidas, a porta de entrada foi ampliada, e a de saída, não.”

O antecessor de Vieira no cargo, Edison Garcia, atribuía o problema de acúmulo de processos não só à “metodologia” do trabalho, mas também à falta de funcionários.

Em setembro do ano passado, quando Garcia chefiava o órgão, o problema já existia: eram 720 mil pessoas com pedidos em atraso. Cerca de um semestre depois, o número dobrou.

Procurador federal da Advocacia-Geral da União que tomou posse como presidente do INSS em janeiro deste ano, Vieira diz que não dá para “colocar a responsabilidade e a solução apenas no serviço público”.

“Não podemos nos tornar dependentes de forma analógica de trabalho. Se o INSS continuar fazendo o que já faz, com a mesma metodologia analógica, vamos ter que repor, duplicar e triplicar (a quantidade de funcionários). Não dá pra fazer trabalho manual de processo por processo. Precisamos de novas formas efetivas de trabalhar”, disse.

Problema de norte a sul

A defensora pública federal no Paraná Carolina Balbinott Bunhak, que acompanha de perto casos de atraso na resposta do governo, diz que a demora do INSS tem se agravado nos últimos dois anos.

“A Defensoria Pública da União recebe demandas de norte a sul do país para atuação em razão da demora do INSS. Não são agências ou casos isolados, é uma situação de âmbito nacional”, disse.

A defensoria presta assistência, de forma gratuita, aos cidadãos que não têm condição de pagar pelo auxílio de um advogado.

Além de atuar caso a caso, a defensoria também trabalha de forma coletiva. O problema tem se mostrado tão grande que a DPU apresentou, em 2018, ação civil pública contra o INSS devido à demora generalizada nas respostas. Em decisão no fim de março, a justiça determinou que o INSS apresente a situação nacional e atualizada sobre os prazos de análise dos benefícios.

“O efeito dessa demora é a dificuldade de subsistência de milhares de famílias. Os mais pobres usualmente sofrem mais com essa demora”, aponta Carolina, defensora pública federal desde 2015.

Há situações em que o prazo do INSS, que deveria ser de 45 dias, chega a um ano, segundo ela.

“Há diversos casos que a demora para análise de benefício assistencial chega a aproximadamente um ano, sendo que ouvimos relatos das dificuldades até para alimentação e condições mínimas de sobrevivência nesse tempo, por vezes dependendo de parentes ou solidariedade de terceiros.”

As três apostas do INSS para resolver o problema

Renato Vieira disse que quer acabar com esse estoque de pedidos atrasados e que o INSS trabalha em várias frentes para resolver o problema.

A primeira aposta é a medida provisória que prevê o pagamento de bônus a servidores do INSS para agilizar a análise dos processos. O texto, que teve o conteúdo antecipado pela BBC News Brasil, foi divulgado pelo governo do presidente Jair Bolsonaro em janeiro.

O INSS espera que isso dê vazão aos processos acumulados, mas depende do Congresso Nacional. Embora medidas provisórias tenham força de lei quando são publicadas, esse ponto, especificamente, depende de alteração nas leis orçamentárias para sair do papel.

Além disso, o presidente do INSS diz que quer, até o fim de 2019, ampliar o número de concessões automáticas para benefícios como aposentadoria por tempo de contribuição, por idade e para o salário maternidade. A ideia é que, por meio de aplicativo, em 60 segundos, o segurado receba a confirmação do pedido.

A terceira medida, segundo Vieira, é implantar o sistema de teletrabalho (trabalho remoto) para grupos de funcionários do INSS. A condição é que a produtividade desses servidores aumente em 30% em relação ao que seria exigido na unidade física.

Mais pobres, mais prejudicados

Enquanto o INSS não resolve o problema, o atraso já tem reflexos no balanço anual da Previdência Social, especialmente nos benefícios para o público mais pobre.

Ao mesmo tempo em que o próprio governo diz que a tendência é que mais gente precise dos benefícios do INSS, caiu em 2018 a concessão de aposentadoria rural e do BPC.

O governo concedeu 312,4 mil novos BPC no ano passado – menos que os 325,4 mil de 2017. Na aposentadoria rural, a concessão caiu de 891,1 mil para 855,2 mil no mesmo período. Os dados são do Resultado do Regime Geral da Previdência Social.

Na comparação com os dados anuais desde 2010, as concessões do BPC e de benefícios rurais só não foram menores que em 2015 – quando houve uma grande greve de funcionários do INSS, que afetou o fluxo de análise dos benefícios.

A concessão de benefícios ao público urbano, por outro lado, apresentou aumento de 3,7 milhões em 2017 para 3,9 milhões em 2018.

Renato Vieira rechaça a possibilidade de o represamento ser um instrumento do INSS para controlar a concessão de novos benefícios e, portanto, limitar novos gastos.

“É uma lenda urbana que o INSS aumenta indeferimento para controlar contas públicas. O represamento não foi decorrente de política pública voltada ao represamento. Isso seria perverso.”

O atraso nas respostas, além de impactar a vida de quem espera a aposentadoria, também afeta os gastos do governo. O INSS precisa pagar os benefícios em atraso com correção monetária.

Em 2018, foram gastos R$ 195 milhões só com essas correções monetárias. Neste ano, até abril, a despesa supera R$ 63 milhões.

A defensora pública Carolina Balbinott Bunhak destaca, contudo, que a correção não compensa as dificuldades financeiras das famílias que esperam meses por uma resposta.

“O que vemos é que as dificuldades financeiras vivenciadas pelos requerentes não são compensadas. Muitas famílias geram endividamento nesse período ou até mesmo apresentam dificuldade de subsistência, que não são imediatamente retomadas com o pagamento dos atrasados corrigidos monetariamente”, afirmou.

Há seis meses, Fabiane Ribeiro Ramos, de 32 anos, espera resposta do INSS sobre o pedido de benefício assistencial para a filha de 4 anos, Ana Vitória, que tem autismo moderado.

“Esse tempo esperando tá sendo muito ruim”, diz ela, que deixou o serviço de auxiliar de limpeza quando a filha nasceu. “Só meu marido que pode trabalhar. Eu preciso cuidar dela. Tem muito gasto e muita atenção.”

O problema é que o marido também não consegue encontrar emprego e tem vivido com renda de “bicos” em Colombo, no Paraná.

“Quando consigo bico, eu faço: ajudante de pedreiro, técnico em informática, mas não dá pra contar”, disse Vitor Hugo.

A família mora nos fundos do terreno do pai de Vitor Hugo, que tem ajudado com alimentação e até com a água da casa.

“Eu conheço gente que consegue ficar no auxílio doença porque perdeu uma unha. Aí a gente realmente precisa e não consegue resposta. Não entendo esse tipo de injustiça.”

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